I. INTRODUCAO
Devo começar por afirmar que eu trabalhei para as Nações Unidas durante a maior parte da minha juventude e lá envelheci. Depois de tantos anos tornei-me produto, conhecedor e defensor do referido sistema, apegando-me aos seus princípios fundadores. É por esta razão que de vez em quando releio a Carta das Nações Unidas, para me assegurar de que esta organização permanece o instrumento central e válido da procura da paz e do desenvolvimento no mundo, tal como prometido na Carta. A realidade sabemos nós, é um pouco mais complicada e menos cartesiana, como pude constatar, tendo trabalhado muito de perto com as missões das Nações Unidas de manutenção da paz, na RDC, no Mali e em outros países Africanos. Fiquei com as minhas reservas sérias. Sobretudo que o país que chefia o Departamento de manutenção da paz nas Nações Unidas (NU), tem sido a França, país com uma história colonial turva e actual em África, porque ainda possui colónias - Nova Caledónia, Ilhas Mayotte, Reunião, etc. Que eficiência e sinceridade na manutenção (restauração) da paz?
Tendo sido funcionário público internacional continuo obrigado a observar certas regras éticas das Nações Unidas, mesmo sendo agora um cidadão comum, um oficial reformado. Reservo-me portanto de elaborar mais sobre a política interna do sistema.
Ainda assim, a grande vantagem e ter tido a oportunidade de viver os dois lados da equação. Vivendo e evoluindo hoje e agora fora do sistema, tenho tido oportunidades de ouvir afirmações de muitos detratores, muitos críticos que não são detratores, e que me fazem perceber a imagem mista que as Nações Unidas ganharam no mundo exterior, o que modifica e reforça de forma importante o meu julgamento. Inúmeros são os exemplos que o mundo exterior vê e que o levam à conclusão repetida de que as Nações Unidas estão sendo instrumentalizadas para promover políticas que não se alinham genuinamente com o espírito e a letra da sua Carta constitutiva, sobretudo em relação aos países de África. Que ao contrário, a instituição internacional serve agendas políticas, económicas e sociais de forças e países poderosos. a Organização Internacional do Comercio é um exemplo típico disso.
O funcionamento das Nações Unidas hoje é comparável ao funcionamento do parlamento de Moçambique até recentemente, que foi sendo forçado pelo governo a limitar-se a aprovar leis submetidas pelo próprio governo, e portanto, pelo partido dominante, uma vez que o governo e o partido se fundiram num só. O parlamento não criou nenhuma lei por própria iniciativa, apesar de ele ser o poder legislativo. Sendo o partido com maioria absoluta no parlamento, o poder político se amalgamou ao poder executivo e se foram apoderando do poder legislativo. Juntando o executivo ao legislativo, o governo passou a ser a FIFA, o clube desportivo e o árbitro. O mesmo acontece nas Nações Unidas, onde quem tem o poder de veto é quem tem promovido mais guerras, indo contra o próprio sentido e razão de criação de um Conselho de Segurança. A perceção de que as Nações Unidas são instrumento das grandes potências é reforçada em várias ocasiões e de forma repetida. Hoje vou discutir mais uma forma(zinha).
II. O TEMA
Desta, venho discutir uma iniciativa chamada INSPETORES FISCAIS SEM FRONTEIRAS (Tax Inspectors Without Borders - TIWB). O que é e para que serve?
Inaugurado em 2015, o programa Inspetores Fiscais Sem Fronteiras (TIWB) é um programa de capacitação, uma iniciativa conjunta da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico) e do PNUD destinada a apoiar os países em desenvolvimento na construção de capacidade de auditoria fiscal. Os especialistas em auditoria fiscal do TIWB trabalham com funcionários das administrações fiscais dos países em desenvolvimento. Ele tem o objetivo de transferir conhecimentos e competências técnicas para auditores fiscais dos países em desenvolvimento, bem como partilhar práticas gerais de auditoria. As administrações dos países em desenvolvimento são os principais alvos (eufemisticamente chamados parceiros) dos programas TIWB; estes países são encorajados a definir as suas necessidades e o âmbito do trabalho. O Secretariado do TIWB é gerido conjuntamente pela OCDE e pelo PNUD e esta sediado em Paris.
Logo à partida, a intenção de criação de uma organização “sem Fronteiras” significa que não responde a nenhum governo, sobretudo não dos países visados. Não receberam mandato de ninguém mas desejam impôr-se como organizações de definição de regras a serem observadas pelos países mais pobres, regras essas que passam a ser normas qualificadas de “internacionais”, sem consenso e cujo cumprimento passa a ser dever dos países pobres. Com impactos negativos da responsabilidade de ninguém. Porquê negativos? Veremos mais adiante no exemplo do meu país.
Acontece que esta iniciativa da OCDE, à qual as Nações Unidas estão associadas via o PNUD, não pode ser isolada do auto-empoderado órgão regulador dos fluxos financeiros, também sediado em Paris, o Grupo de Acão Financeira (GAFI). O GAFI lidera a ação global para combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Ele investiga como o dinheiro é branqueado, como o terrorismo é financiado, e promove normas globais para mitigar os riscos e avalia se os países estão a tomar medidas eficazes nesse sentido. Quem o empoderou?
Sem ter sido mandatado por nenhum consenso, o GAFI acaba por se impôr, em particular sobre os bancos dos países em desenvolvimento. Curiosamente, o único país africano membro do GAFI é a África do Sul, cujo banco central (Reserve Bank of South Africa) continua constituído de capitais privados estrangeiros e o Estado não tem influência nele, mais de trinta anos depois do fim do apartheid! Sem soberania financeira, a África do Sul não pode reclamar representar a África, Não estamos no GAFI. Ponto final.
Apesar de se ter outorgado este mandato e de ser muito influente junto dos bancos dos países em desenvolvimento, forçando regras ditas de prevenção de fluxos ilícitos, a sua constituição diz: “Este Mandato não se destina a criar quaisquer direitos ou obrigações legais”. Por outras palavras, forçar, mas com possibilidade de fugir à responsabilidade de ter forçado. Instrumentos, iniciativas e organismos que se vão autoimpondo.
À semelhança do fórum econômico anual de DAVOS, sem mandato de ninguém, mas gradualmente tomando o comando da economia mundial, e passando a ser um governo mundial de forma manhosa.
Ouviu falar de fluxo de capitais ilícitos?
Entretanto duas coisas estão sendo permitidas: o fluxo ilícito de capitais dos países em desenvolvimento para “paraísos fiscais” e países desenvolvidos. Trata-se aqui, portanto de promover a imposição de cobrança mais rigorosa de impostos aos cidadãos através dos técnicos “sem fronteiras”, enquanto se permite às elites governamentais de exportar o capital e ter contas ilimitadas no estrangeiro. Reduzir a circulação de dinheiro na economia nacional e em contrapartida, proteger as elites nacionais colaboradoras, permitindo-as exportar o capital para oferecer aos seus filhos as melhores escolas no estrangeiro e às suas famílias tratamentos médicos no estrangeiro, não existentes nos seus países, ditos pobres; países pobres sem os quais os países ricos seriam ainda mais pobres. A retirada do dinheiro do cidadão e da circulação nacional faz com que os investimentos na saúde e na educação não sejam possíveis.
Reitero: Para onde vai o imposto arrecadado? Não se destina a melhorar os serviços, mas sim a financiar a vida das elites nacionais e estrangeiras nos países desenvolvidos. Não se trata de renunciar ou denunciar o imposto, mas sim o seu encaminhamento.
E como se criam as condições para os “sem fronteira” encontrarem terreno e justificação para nos ajudarem? Enfraquecendo-nos, tornando-nos necessitados da sua ajuda.
E como nos enfraquecem? Sugando as nossas economias através de empresas extrativas e secando o dinheiro da circulação nacional que impulsionaria a economia nacional.
Como? Acostumando-nos à dependência e ao gosto pelo dólar, e aos empréstimos; e depois exigindo pagamentos de taxas de juros sobre os empréstimos.
Para uma economia que produz pouco e importa muito (incluindo importação de produtos de segunda mão) como o nosso, há pouco dinheiro para pagar juros, que se estendem por décadas. Assim, passamos o tempo a pagar juros sem capacidade de pagar o principal. É este estado de dependência que interessa ao capital internacional, provado de forma abundante pelos vários esquemas de escalonamento, restruturação da divida e outros esquemas dilatórios de perpetuação da relação desigual e fortemente trapezoidal.
A melhoria da coleta de impostos é então apresentada como justificação para dizer que sabemos controlar a inflação e merecemos mais empréstimos. E passamos mais uma vez o tempo a pagar juros acumulados. Um ciclo vicioso de pobreza perpétua se impõe, com o apoio de “técnicos sem fronteira” que nos vem ajudar a acelerar a coleta de impostos para pagar os juros, com o FMI e o Banco Mundial a observar, tais outros agentes “sem fronteiras”.
Em contrapartida, e para reforçar esta dependência do capital estrangeiro chamado internacional, impõe-se aos bancos moçambicanos (banca local) dois grandes pesos para conseguir os seus desígnios: juros domésticos altos e depósitos interbancários obrigatórios altos.
III. MOCAMBIQUE
O caso de Moçambique que passamos a discutir é típico de uma situação neocolonial. Clique aqui para saber mais.
Taxa de juro de referência a partir de 2022 muito elevada:
Nas suas atribuições de banco central, o Banco de Moçambique introduziu em 2022 uma taxa única de referência (Prime Rate) muito elevada para as operações de crédito no sistema financeiro. Ela foi de imediato denunciada por empresários e cidadãos moçambicanos com crédito na banca nacional. Com efeito, a partir de Outubro 2023, ela está fixada em 18,60%, e 20,5%, com impacto acrescido para as taxas de juro da banca comercial para as empresas e os indivíduos. Primeiro instrumento de asfixia econômica.
Por outro lado, as reservas obrigatórias dos bancos comerciais no banco central (Banco de Moçambique) estavam fixadas por este, no coeficiente de 10,5% em moeda nacional e 11% em moeda estrangeira até janeiro de 2023. Nos primeiros seis meses de 2023 o banco central aumentou por duas vezes as reservas obrigatórias, para (na expressão do banco) "absorver a liquidez excessiva no sistema bancário, com potencial de gerar uma pressão inflacionária". Hoje as reservas obrigatórias são de 39% dos depósitos em moeda nacional e 39,5% no caso de moeda estrangeira. Segundo nó de estrangulamento da economia.
Até o FMI achou que o banco central tinha ido para além do zelo que se esperava dele. Tendo compreendido que este aperto era demais, o FMI agora quer distanciar-se de uma política por ela promovida, sugerindo que este nível de depósitos obrigatórios seja reduzido! Pode ler apoiando aqui.
De acordo com a Associação Moçambicana de Bancos, esse aumento resultaria (ou resultou) numa transferência equivalente a USD 1.03 mil milhões (MZN 47 mil milhões e USD 245 milhões), o equivalente a 5% dos recursos dos bancos comerciais para o Banco de Moçambique.
É uma desoxigenação! Com um SUSTENTA político, o apoio comercial ao pequeno empreendedor e ao pequeno agricultor não é possível. Apenas os mega-projetos conseguem sobreviver.
Criou-se assim e vai-se reforçando todo um ciclo nacional em conluio com interesses estrangeiros para a evacuação de recursos financeiros para fora de Moçambique. Para pagar empréstimos (incluindo a tristemente celebre dívida ocultada). Para se qualificar para mais empréstimos, reforçando assim a continuação da dependência do capital financeiro internacional (bom aluno). Por outro lado, vendendo-nos várias histórias, tais como um certo “dividendo demográfico”, uma certa reserva de parques naturais que deviam atingir os 30% do território nacional e outros esquemas lúgubres que camuflam o assalto do capital internacional à soberania nacional por seca e desvalorização da moeda nacional.
Como dizia no meu artigo sobre a Estratégia Nacional de Desenvolvimento 2025-2034, esta política monetária, praticada por um banco central cujo Governador não respeita a convocação da Assembleia da República, órgão legislativo de soberania nacional, o ENDE não tem financiamento porque apesar de a estratégia incluir muitos elementos de interesse do capital estrangeiro, não pode ser financiado e não tem um banco de desenvolvimento, nele preconizado.
IV. A MINHA TESE
A soberania nacional está atacada em várias frentes: não só na frente de segurança territorial em Cabo Delgado, por causa da indústria extrativa exportadora. Não só na falta de segurança e soberania alimentar. Mas também na soberania econômica, como aliás o provou o fecho curto da fronteira de Ressano Garcia nos fins do ano 2024 por causa das manifestações populares.
Enquanto seguirmos cegamente os ditames das instituições internacionais tais que o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (que aliás participa na nomeação do Governador do banco central em muitos países Africanos). Enquanto não houver soberania financeira, digo, esqueçamos o sucesso do ENDE 025-2034, mesmo com as suas lacunas.
Existem muitas forças “sem fronteiras” e infelizmente de vez em quando também se apresentam sob cobertura diplomática das Nações Unidas.
A luta será longa e exigira muito discernimento e persistência, e exigirá instituições nacionais fortes, ou a serem fortificadas propositadamente.
Jose
Tete, Janeiro de 2025
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