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MEMORIAS DO SEMINARIO SAO JOAO DE BRITO

Zóbwè, Tete (1968-1972)

 

       I.            A caminho do Seminário

 

O Seminário do Zóbwè teceu em mim uma rede de emoções que se referem a um período anterior, e se estendem para muito após a minha passagem pelo Zóbwè.  Digo eu, o Zóbwè afectou toda a minha vida, e isso vou tentar provar nestas páginas.


Para falar do Zóbwè, devo retornar historicamente à missão católica de Fonte Boa, gerida pela congregação Jesuíta.  Deles me lembro apenas dois padres e três irmãos religiosos: Irmão Andrade, Irmão Loureiro (camionistas) e Irmão Brito (encarregado das machambas).  Padres David Gonzaga e Padre João de Deus Kantedza.  O Padre Kantedza veio celebrar a sua primeira missa depois de sagrado, aqui na Fonte Boa, não me lembro mais em que ano, eu era pequeno.  Lembro-me sim que meu pai me disse que fui entregue às irmãs da missão a partir de 1958, após a morte simultânea de minha mãe e meu irmão gémeo.


Acabamos sendo três órfãos na missão da Fonte Boa naquela altura: David, Helena e eu.  Ficamos nas mãos de várias raparigas do lar feminino, das quais me lembro duas: Ana Samuel e Margarida Ferrão (vovó Guida, ainda viva).


O Padre Kantedza foi quem ficou mais na minha memória porque meu pai lhe coadjuvou na pastoral. Ambos eram grandes cantores com vozes dominantes na igreja.  O padre Kantedza me ensinou a fabricar terços e rosários que se vendiam aos domingos na Fonte Boa.  Era o fotógrafo da missão, com laboratório e camara escura e tudo. Ambos foram mortos em diferentes circunstâncias e em tempos diferentes. 


Foi o Padre Kantedza que, depois de se entender com o meu pai, me levou ao Seminário do Zóbwè na sua carrinha Nissan, via Tsangano, 1968.  Em preparação para essa transição, o meu irmão mais velho lá da aldeia levou-me a uma feira no Malawi – nsika wa pa Ntcheu- através da montanha (a pé) para comprar sapatos de plástico para levar para o Seminário (sapatos bata, muito quentes em tempo de calor).  Só usava esses sapatos aos domingos.

Não posso falar do Zóbwè sem fazer estas circum-navegações.  Porque tudo o que me aconteceu na vida, foi fruto da semente que os padres inculcaram na minha mente no Seminário: comportamento, raciocínio, aprendizagem eterna, abstração, independência mental e espirito crítico.

 

    II.            No Seminário do Zóbwè

Encontrei no Seminário, à chegada, a seguinte equipa gestora (que a memória me lembre):

Padre Luís Gonzaga, Reitor e professor de Inglês.  Acabara de morrer na altura o anterior Reitor do Seminário, Padre Peixoto, num acidente de aviação em Vila Coutinho (Ulongwe).  No ano 1972 o padre Luís seria sagrado bispo na Escola Normal de Vila Coutinho (Vila Ulongwe).  Nós fomos testemunhas do evento, convidados como seminaristas.  Daí passou a Bispo de Vila Cabral (Lichinga).  Eu ainda escrevia cartas a ele e ele sempre respondeu.  A primeira carta, para pedir apoio financeiro para sair do Seminário Médio do Chimoio (nosso reitor, Padre Alexandre Maria, mais tarde Arcebispo de Maputo) para fazer os meus exames do sétimo ano no liceu Pero de Anaia (Samora Machel).  Fiquei hospedado numa casa de padres algures no Macurungo, mal me lembro.  A segunda vez, foi ele que procurava serviços da minha organização para ajudar refugiados congoleses e Burundeses que passavam por Niassa.


Padre Manuel Marques, Professor de Francês e instrutor de música.  Este também me ficou na memória porque ele me ensinou a tocar o órgão da capela e passamos a ser três organistas: Júlio Joaquim, do Barué, e Rafael Pereira da Matacuane, Beira.  No coro do Seminário, fui o solista por três anos, o que nos valeu duas visitas à cidade de Tete no Natal de 1970 e Páscoa de 1971 para cantar serenadas de casa em casa para os Portugueses da cidade.  Toda a cidade, compreendida entre o rio até ao vale do Nyartanda era habitada por portugueses, na maioria brancos, e alguns poucos Africanos que tinham acedido ao estatuto de assimilados.  Os colonos ofereceram-nos cestos de rebuçados, pêssegos, maçãs e bolinhos.  Na noite de Natal, o Bispo Feliz Nisa Ribeiro ofereceu-nos um jantar.  Foi aí que as irmãs da caridade do economato da Diocese me forçaram a aprender a  etiqueta de comer laranja com garfo e faca!!!  Na altura atravessava-se o Zambeze de batelão.


Padre Manuel Gama, Professor de Latim e Padre espiritual: Logo à chegada ao Seminário, o Padre Gama me orientou para a congregação jesuíta.  Por isso me obrigaram a estudar também a língua grega, mas não fui muito longe, porque depois do sétimo ano, tive que deixar o Seminário, dado que minha família se dispersava pelo desaparecimento do meu (nosso) pai.  Se não fora isso, não tinha razão para desistir.


Padre António García, Professor de história e Português, contador de histórias sobre as colónias portuguesas de Goa, Damão e Diu, onde aparentemente fora capelão do exército Português na sua aventura colonizadora. Facto contado por ele mesmo.


Sílvio Moreira (ainda não era Padre): nosso Prefeito e professor de biologia.


O outro padre professor de Química, Física e Matemática? a memória não me ajuda.  Era um professor muito conhecedor, mas muitíssimo nervoso, asceta e de disciplina pessoal excessiva, um magricela.  Uma vez interrompeu a missa, me chamou pelo nome em voz alta para me expulsar da missa.  A única vez que me senti como um verdadeiro diabo urinando nos meus calções, sem ter cometido pecado.


Irmão Lima, um factótum que se encarregava do gerador, da canalização de água cristalina e fresquinha que vinha da montanha chefe da machamba, reparador de viaturas e motorizadas, encarregado da enfermaria e do armazém de livros: muito esperto.  O seminarista tinha qualquer mazela ou dor ou doença durante a noite: aspirina!  O Seminário tinha um armazém de livros escolares de todos os anos do primeiro ao quinto.  Era só nos dirigirmos ao armazém, recolher todos os livros de que precisávamos para o ano escolar, e devolver ao fim do ano.  No meu tempo éramos mais de 310 seminaristas e nunca faltou livro algum.  Eu ainda fiquei com quatro do quinto ano (biologia, química, matemática e geometria), que sempre levei comigo por todo o lado onde fui; acabei oferecendo-os a um professor de família aqui em Tete este ano (2024).  Na reforma, já não tenho uso deles porque parece que não serei mais professor.  Para mim, a biblioteca é para ler. Não para estética caseira, no meu caso.


Dos colegas seminaristas

Dos mais de 300 colegas do meu tempo, apenas dois que eu conheça chegaram a ser sagrados: Júlio Joaquim e Manuel Chuangira, ambos falecidos.  Talvez tenha havido dois ou três mais.


Outros colegas que me vêm à memória: José Pedro, Marcos Magagula, Maurício, um trio que chegou ao Zóbwè já muito adultos e já formados como professores. Júlio Ntchola, Aniceto Teimizira, José Beca, Paulo Sandramo, Jerónimo Raposo, Daniel Antonio (que  uma década mais tarde vinha a ser meu chefe e Embaixador na Embaixada de Moçambique na Etiópia, por um período breve), João Janota, Lamberto Maite, Francisco Cardoso, Pedro Comissario (diferente do Pedro Comissario Afonso de que falo mais abaixo), Eugénio o anedotista, Rafael Pereira o melhor pianista de nós três., Aleixo. E Eusébio Guido Martinho, de que falo mais adiante.  Éramos muitos e a memória se me definhou.

 

 III.            Depois do Zóbwè, influências do Seminário no meu percurso

Embaixador João Ataíde, sempre vestido com aprumo impecável. Foi embaixador de Moçambique em Portugal, talvez o primeiro Embaixador naquele país, e que eu encontrei em Maputo quando fui trabalhar para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.  Morreu em circunstâncias não bem claras num acidente de viação viajando pelo Malawi.


Embaixador Pedro Comissário Afonso, veio a ser Director dos Assuntos Jurídicos no Ministério dos Negócios Estrangeiros do meu tempo.  Lembro-me que ele representou Moçambique em muitas conferências sobre o Direito do Mar em Nova Yorque.  Tornei a cruzar-me com ele na Suíça, quando ele era Embaixador de Moçambique e eu trabalhava no Alto Comissariado para os Refugiados, também em Genebra.


Embaixador Francisco Madeira, que mais tarde veio a enquadrar-me no Departamento de África do Ministério dos Negócios Estrangeiros e me enviou em missões diplomáticas, acompanhando figuras altas do estado: Nova Deli, Pyong Yang, Mumbai, Tanzânia, Dakar-Sally, Brazzaville, Kinshasa, Addis Abeba, Lisboa e Paris.  Por sugestão dele, Joaquim Chissano enviou-me para a Etiópia para abrir a Embaixada de Moçambique naquele país, na companhia do Embaixador Alberto Sithole, do Ministro Conselheiro Katawala, e do Segundo Secretário Eusébio Guido Martinho, que sobreviveu ao desastre aéreo de Samora, mas por poucos dias.  Eusébio foi também colega meu no Seminário do Zóbwè.  Na Embaixada, foi meu supervisor para as conferências da Comissão Económica das Nações Unidas para a África e da Unidade Africana.  Tudo isso por impulso de Francisco Madeira (Viva Nkwene de cognome).


Foi no Seminário do Zóbwè que ganhei habilidades linguísticas: Francês, Inglês e Latim.  No Sexto ano tentei o grego, mas isso foi apenas um pirilampo porque logo depois do meu exame do sétimo ano, saí da carreira. E passei no mesmo Chimoio a professor de Francês, Inglês, Biologia e Matemáticas nas duas escolas secundárias (1974-1980).


Governava então em Manica um senhor Manuel António, que um dia me convocou para o seu escritório para me informar que “Maputo” me enviava para a Tanzânia para um curso de professores.  Nada disso.  Acabava de ser recrutado por alguém no Maputo e fui fazer o BA de Relações Internacionais para parar em Maputo no Ministério dos Negócios Estrangeiros: acabei sabendo que procuravam funcionários públicos com domínio de línguas europeias (para mim, fruto do Seminário do Zóbwè).


Era o princípio de uma carreira que me levou a entrar em 1989 para as Nações Unidas, onde passei 33 anos dos mais úteis da minha vida, até à reforma. Desde os Negócios Estrangeiros, os meus serviços eram mais solicitados do que eu precisava de concorrer.  Por cinco vezes na minha carreira pública me ofereceram posições ora porque falava Português, ora Francês, ora Inglês, ora Swahili.  Fruto do Seminário (excepto o Swahili).

 

Considerando que representei a agência dos refugiados em cinco países onde apresentei carta diplomáticas (fui também Embaixador na ECOWAS/CEDEAO), o Seminário do Zóbwè deu fruto a pelo menos quatro embaixadores de carreira, que eu me lembre.

 


Outros legados que levei do Zóbwè

  • Catequista: já durante o Seminário fui catequista, e a catequese se dava junto à moageira do Seminário, no pomar detrás da capela.  Sou catequista voluntário agora na reforma.

  • O gosto pela leitura e por escrevinhar.

  • A tendência natural pela pontualidade.

  • A tradição de sempre levar uma esferográfica e um pedaço de papel por onde quer que ande, para anotar todas as inspirações que me vem à cabeça.  Com isso, acabei por ser escritor, tenho um site internet pessoal onde teço reflexões sociais sobre Moçambique, África e questões internacionais que nos preocupam.  Um dia editarei.



Saí do Zóbwè em 1972 para o Seminário Médio de Chimoio, cauda do meu esforço na rota sacerdotal.  Do Chimoio ainda fomos ao casamento de Samora Machel com Graça Simbine, Ministra da Educação em Maputo, viagem de machimbombo pontuada por um acidente de viação em Magude (viatura embateu no nosso machimbombo e a pessoa foi evacuada de helicóptero para Maputo!)


Só retornei ao Zóbwè este ano numa peregrinação diocesana para a qual até já nem tenho mais energia, 52 dois anos mais tarde.  Daqui a 2 meses celebro os meus 68 varões.

 

Antonio Jose Canhandula Ntengoipa Akazianyenga Phiri

Tete, Setembro de 2024



 

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