Para enquadrar a minha proposta, passo em primeiro lugar a transcrever integralmente o artigo-motivo aparecido nos órgãos de comunicação social.
A. Citação
Fundo Global Anuncia Mais de 880 Milhões de Dólares Para Combate a Doenças em Moçambique Nos Próximos Três Anos[1]
O Fundo Global anunciou esta quarta-feira, 10 Abril, em Maputo, que estão disponíveis 881,1 milhões de dólares (55,6 mil milhões de meticais) destinados à implementação de programas para a prevenção e combate ao HIV, Tuberculose e Malária, bem como para a melhoria da gestão do Sistema Nacional de Saúde, capacidade de testagem de medicamentos, vacinas, produtos de saúde, entre outros.
Segundo a Agência de Informação de Moçambique (AIM), o montante, que será disponibilizado ao longo do triénio 2024-2026, visa igualmente aumentar o número de pessoas vivendo com HIV, de modo a que saibam o seu estado de saúde, esperando-se atingir 95% dos infectados até 2025. De acordo com o gestor de Subvenções do Fundo Global, Mark Edington, com este investimento espera-se o aumento da cobertura de pessoas vivendo com HIV (PVHIV) em tratamento anti-retroviral para 81% e redução de raparigas e rapazes envolvidos em comportamentos de risco.
Do montante global, 789,3 milhões de dólares (49,8 mil milhões de meticais) serão desembolsados pelo Fundo Global e os restantes 91,8 milhões de dólares (5,8 mil milhões de meticais) pelo Executivo, explicou Mark.
A AIM explica que o montante que será desembolsado pelo Governo provém do remanescente que havia sido alocado pelos parceiros de cooperação no âmbito da pandemia da Covid-19. O ministro da Saúde, Armindo Tiago, fez saber que do montante global, 475,2 milhões de dólares (30 mil milhões de meticais) serão direcionados aos programas de prevenção e combate ao HIV, 57,2 milhões de dólares (3,6 mil milhões de meticais) para a tuberculose, 190,3 milhões de dólares (12 mil milhões de meticais) para malária e 66,5 milhões de dólares (4,2 mil milhões de meticais) para o fortalecimento de sistemas de saúde. “Com estas subvenções, Moçambique passa a ser o segundo maior portfólio do Fundo Global. Este tecto representa um privilégio e ao mesmo tempo uma grande responsabilidade”, disse o ministro, destacando que o Governo continuará a investir em programas de controlo e no Sistema Nacional de Saúde.
O Ministério da Saúde (MISAU) introduziu como inovação para o triénio 2024 /2026 a alocação de 8,5% do total dos recursos para o fortalecimento do sistema de saúde contra 7,5% do triénio anterior.
No quadro do financiamento do Fundo Global constam quatro subvenções a serem distribuídas em igual número de entidades, nomeadamente, MISAU, Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), Centro de Colaboração em Saúde e Visão Mundial. Sobre o HIV, dados divulgados ainda hoje pela ministro da Saúde indicam que entre 2002 à 2022, o número de novas infecções baixaram em 41%. “Também regista-se uma queda no número de mortes relacionadas com o SIDA por ano, tendo reduzido na ordem de 27% e foram evitadas 1,7 milhão mortes”, disse Tiago.
O governante disse que a taxa de transmissão vertical reduziu de 43% no ano 2004 para 9% em 2023. Este facto contribuiu para evitar 352 mil novas infecções. O ministro da Saúde disse ainda que relativamente às infecções pediatras, em 2023, 88% das pessoas vivendo com HIV conheceram o seu estado, destas 85% alcançaram a supressão viral. Por outro lado, de 2002 à 2022, as mortes por malária registaram um decréscimo na ordem de 95%, pelo facto das autoridades distribuírem cerca de 28 milhões de redes mosquiteiras impregnadas com insecticida.
A presidente do Conselho de Direcção da Plataforma da Sociedade Civil para Saúde e Direitos Humanos, Gilda Jossai, manifestou a sua satisfação com o anúncio do apoio, mas lamentou o facto de muitas vezes a sua entidade ser colocada de lado. A fonte entende que o investimento do Fundo Global está baseado no diálogo nacional envolvendo diversos actores, incluindo o Governo e a sociedade civil. “Esperaramos que o Fundo Global reforce os serviços de monitoria e sistema de saúde”, anuiu.
O que é o Fundo Global
O Fundo Global de Luta Contra AIDS, Tuberculose e Malária é uma organização financeira internacional que tem como objetivo “atrair e distribuir recursos adicionais para prevenir e tratar de HIV e AIDS, tuberculose e malária em países em desenvolvimento.
Através da mobilização de recursos num ciclo trienal, proporcionando uma visão de longo prazo no combate à SIDA, à tuberculose e à malária, bem como no fortalecimento de sistemas de saúde resilientes e sustentáveis, Governos, sector privado e fundações comprometem-se com doações para sustentar a missão do Fundo que, enquadrado numa parceria global de saúde, colabora estreitamente com parceiros dos sectores público e privado.
O Fundo Global supervisiona e avalia as actividades através de várias estruturas e mecanismos de revisão, assegurando que os fundos sejam aplicados conforme o intencionado. Os resultados destas avaliações são posteriormente comunicados aos doadores.
Fim de citação
B. Os meus argumentos
Abstenho-me de analisar os motivos deste financiamento cair precisamente neste momento político de Moçambique, véspera de eleições. Como aliás um financiamento anunciado neste mês de Abril para o desenvolvimento de Cabo Delgado, um programa e uma intenção conhecida de há muitos anos de conflito naquela Provincia do país.
Basta no entanto constatar que os objetivos econômicos, sociais e políticos do doador podem muito bem não ser os anunciados em público, e não coincidem plenamente com as necessidades estruturais de Moçambique no sector beneficiado – a saúde.
Porquanto concordemos que o VIH/SIDA, a malária e a tuberculose são calamidades sanitárias no país, a cólera é muito mais problemática e mais propalada no país. Ademais, de acordo com o Ministério da Saúde[2], um terço das mortes são causadas hoje por doenças não transmissíveis, tais como a tensão arterial, diabetes e cancro. Juntando outras doenças transmissíveis tais como a cólera e agora a conjuntivite, podemos com um certo grau de aproximação falar de metade das mortes.
Parece-me existir aqui espaço para Moçambique redefinir as suas prioridades sanitárias, incluindo a prioridade de prevenção, (de doenças transmissíveis e não transmissíveis), que requerem educação sanitária e investimento no acesso à água potável e redução da defecação ao ar livre, mais do que medicamento.
O que este financiamento demonstra é um interesse em manter Moçambique como mercado farmacêutico, mais do que uma parceria para prevenir e combater a doença. O que nos impede, com o passar do tempo, de renegociar as nossas prioridades? Porquê tratamos hoje do VIH/SIDA como se tratava há vinte anos?
O que nos impede é a adopção e familiaridade com um discurso repetido e legitimado por peritos externos, o qual tem o objetivo de nos fazer ver as coisas de maneira unidirecional. Com dados científicos, certamente, mas dados esses divorciados das realidades econômicas, sociais e sanitárias do país. Por sua vez, levando-nos a investir excessivamente no tratamento da doença, com consequência financeira e comercial de priorização da indústria farmacêutica.
E que tal investir, com outros países da região, em capacidades de pesquisa e produção de vacinas contra a cólera. A vacina é curiosamente mencionada no artigo, uma só vez num paragrafo que o leitor atento pode encontrar. Não se trata de produzir, mas, uma vez mais, de comprar.
O nosso discurso devia portanto superar o discurso do Fundo Global e demonstrar muito maior conhecimento da nossa realidade. Já tive oportunidade de descrever esta estratégia da meias-verdades num outro artigo onde fazia analise de relatórios econômicos do Banco Mundial e do FMI, os quais evidenciavam que em 2023, o crescimento do PIB de Moçambique fora de 5%. Esse relatório assim apresentado é meia-verdade porque omitiu o facto de que desse crescimento, 3,5% foi imputável à exploração e exportação do carvão, do gás e da eletricidade, e portanto, o crescimento real retido em Moçambique era muito mais perto dos 1,5%.
C. Conclusao
Onde quero chegar?
Chegou a altura de agora em diante insistirmos com os nossos parceiros sobre quem deve redefinir as nossas prioridades. Não é a ajuda internacional que nos vai desenvolver. Porque esta ajuda não é caridade, ela própria cria as condições de aceitação dos seus interesses futuros, interesses nos quais Moçambique é um mercado reservado. Utilizam discursos benevolentes apenas como “cantiga para o boi adormecer”.
A necessidade do aprofundamento dos objetivos últimos de fundos como estes, que nos parecem neste caso serem três:
Que o doente se mantenha continuamente enfermo, mas vivo;
Manter um mercado que conhece e usa a sua linguagem e o seu produto através de um investimento virado para a continuidade; e
Manter o país permanentemente debilitado e dependente da sua indústria farmacêutica mantendo o mercado sempre necessitado, mas nunca virado para a produção de capacidades de auto-sustento.
O valor-contrapartida (financiado pelo estado moçambicano, como condição para este subsídio financeiro do Fundo Mundial) deve portanto ser visto de maneira diferente: não se trata de parceria, mas sim de uma subvenção que Moçambique paga ao parceiro internacional através de uma maior abertura do mercado nacional aos interesses comerciais internacionais (do doador).
Este fundo, importante que ele é para nós, mais do que solução sanitária, é fonte de emprego de muitas organizações estrangeiras que acabam repatriando metade do tal fundo através de compras de produtos e custos administrativos nos mercados do mesmo doador. Não é que possamos usar este dinheiro para ir comprar medicamentos no Brasil!
A estratégia do conforto e familiaridade deve dar lugar a uma estratégia onde nós próprios questionamos as nossas prioridades e a nossa estratégia sanitária.
Continuemos a comprar medicamentos, ou pensemos em produzir alguns deles?
Continuemos a priorizar o medicamento (produto químico) ou desenvolvamos a medicina tradicional, menos toxica aos rins e ao fígado?
Continuemos a priorizar o medicamento ou a prevenção?[3]
Insistir no VIH/SIDA, tuberculose e malária tem o seu mérito. Mas isso significa insistir em 25% das causas de morbidade e mortalidade, dando menos atenção aos outros 75%.
Não se ganha uma batalha no conforto ou passando a nossa batalha a outros.
Jose
Tete, 16 de Abril 2024
[1] Fundo Global Anuncia Mais de 880 Milhões de Dólares Para Combate a Doenças em Moçambique Nos Próximos Três Anos • Diário Económico (diarioeconomico.co.mz)
[2] https://www.afro.who.int/pt/news/em-mocambique-cerca-de-13-das-mortes-sao-devidas-doencas-nao-tramissiveis-revela-o-ministro-da
[3] incluindo insistindo na inspeção dos produtos que se vendem ao público e que são fontes de doenças não transmissíveis como a diabete. Quantas bebidas doces não são inspecionadas pelo seu conteúdo?
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